quarta-feira, 31 de março de 2010

Alma a nu

Fecha os olhos...sim, agora. Mais logo não. Tem que ser agora. O mundo lá fora pode esperar. Fecha os olhos e ouve. Consegues ouvir? O barulho da vida que corre, o som da vida em ti, a tua vida. Ouve o bater do teu coração, sente o teu respirar...esta é a vida. Porque ela existe em ti. Não existe apenas lá fora, existe dentro de ti. E agora olha. Consegues ver? Consegues ver a tua alma, os teus sentimentos, a tua essência? Consegues ver todos aqueles que cruzaram a tua vida, todos aqueles que amaste? Aqueles que já partiram, e aqueles que continuam nos teus passos? E agora faz um esforço maior..e vê mais além..vê-te a ti naquele momento...há tantos tantos anos... sente o que sentiste nesse segundo que te moldou, que continua guardado no mais fundo de ti. Consegues ouvir a música que tocava na rádio? Consegues cheirar o perfume das flores? Consegues sentir o calor daquele sol que te aquecia? Agora mantém-te lá... só por um segundo. Eu sei que o tempo corre, e que o mundo lá fora espera por ti. Mas não vás ainda. Fica aí só mais um bocadinho...aí, de olhos fechados, com a tua alma a nu. Olha para dentro de ti outra vez..e sente aquilo que sentiste naquele momento. Sim, porque esse momento ainda continua dentro de ti. Eu bem sei que o tentaste apagar, que durante todos estes anos tentaste convencer-te de que tinha desaparecido de ti... Mas encontra-o. Ele continua ai. Revela-o novamente, olha para ele nos olhos..e vê-te nele. Vê a tristeza que te inundou a alma, sente as lágrimas que te sufocaram a voz. Desespera outra vez. Grita se precisares. Liberta a dor. Liberta. Liberta-te...
...E agora, devagarinho abre os olhos. Primeiro um, depois o outro. Respira fundo, e ouve o mundo, o teu mundo lá fora. E agora vai, segue o teu dia, enfrenta-o. Tu podes tudo. Porque tu conheces a dor, não temes nada. E sorri...

sexta-feira, 5 de março de 2010

Just an ordinary girl

“I’m just an ordinary girl…”
Era este o seu primeiro pensamento quando acordava, e a última frase que dizia a si própria antes de adormecer. Desde pequena que estas palavras a perseguiam, que a atormentavam como um fantasma... Nem sabia muito bem explicar o poder daquelas palavras. Apenas sabia que encerravam em si a sua vida. É, aquelas palavras eram o resumo da sua vida. Durante muitos anos tentou provar a si própria que não era “just an ordinary girl”, que não tinha uma vida vulgar. Não suportava a ideia de ser mais uma, de não ter trazido nada de novo a este mundo. E era por isso que todos os dias tentava mostrar a si própria que era mais que isso, que era diferente disso, que tinha superado isso... não conseguia definir o que era “isso”, e não, não tentava ser melhor do que os outros. Não era isso que a impulsionava..não era o desejo de ser melhor, mas o desejo de ser diferente, de marcar a vida das pessoas que a rodeavam, de não ser apenas mais uma...
...muitos anos passaram, e aquela frase continuava a persegui-la. Mas agora com o peso da resignação. Tinha desistido de tentar. Tinha desistido de querer. No fundo, era “just an ordinary girl”, com uma vida vulgar. Não havia nada que a distinguisse. Não era bonita, não era engraçada, não era inteligente, não tinha uma carreira brilhante...era mediana em tudo, normal...
Aquele dia começou como outro qualquer...o barulho ensurdecer do despertador, o estender do braço à procura do alarme para o desligar...e aquela frase na cabeça. Olhou para o relógio... já estava atrasada! Num pulo levantou-se, correu para o duche, vestiu-se rápido e saiu. Lá fora a cidade já há muito tinha acordado. As pessoas na rua encaminhavam-se rapidamente para os seus destinos. Quase em modo automatico. Poucas palavras se ouviam. Nenhuns sorrisos. Apenas o barulho dos motores dos carros, aqui e ali o som duma buzina menos paciente, o som das lojas a abrir. Uma manhã normal na grande cidade. “I’m just an ordinary girl in an ordinary world”.
Trabalhava num cafe no centro da cidade. Não era o seu sonho, nunca tinha sido. Mas aquela oportunidade tinha surgido há uns anos, quando precisava desesperadamente de dinheiro, e há muito se tinha acomodado aquela situação. E avaliando mais a fundo os seus motivos para continuar ali, havia naquele trabalho algo que a prendia. Todos os dias tinha oportunidade de se cruzar com pessoas diferentes, com vidas diferentes... havia alguns clientes que particularmente a fascinavam. Pessoas interessantes, com vidas diferentes, “not so ordinary”.. uns porque passavam ali todos os dias a caminho do trabalho, sempre a correr, sempre a falar ao telemovel, ou a escrever nos seu cadernos que transportavam com o cuidado com que se leva uma criança. Pessoas com trabalhos importantes, bem-sucedidos, reconhecidos pela sociedade como os melhores...não como ela. Ou então mulheres e homens bonitos, vindos da agencia de modelos que havia no prédio ao lado, que entravam no café e prendiam instantaneamente o olhar de todos, que traziam o belo àquele cafe já velho com a tinta das paredes a cair, que por momentos traziam o sol de verao para dentro daquelas quatro paredes. Ou ainda, e especialmente, o vizinho do predio da frente, que tinha um dia sido um actor famoso, agora já de bengala e cabelos brancos, que passava metade do dia sentado na mesma cadeira daquela mesma mesa de cafe, a contar as suas aventuras, as suas histórias... histórias de teatros, e viagens, e festas, e pessoas famosas, e aventuras, e desamores..paixões avassaladoras, mentiras e guerras... e ela pensava que era assim uma vida que queria ter tido. Uma vida daquelas. Qualquer uma. Menos a sua.
Nesse dia, o mesmo frenezim... a correria da manhã...os cafés para ajudar a cidade a acordar, para ajudar todas aquelas vidas tão especiais, tão extraordinarias, a serem vividas, intensamente, rapidamente, exaustivamente.
Nesse dia, o actor veio novamente. Por volta das 11h da manhã, como fazia todos os dias. Irritava-o a correria da manhã. Dizia que no tempo dele as pessoas não corriam assim, e que também viviam. Que ele nunca tinha corrido, e que tinha vivido tudo o que tinha a viver. Por isso não percebia aquela mocidade. E por não perceber, irritava-se. E por se irritar, evitava. E por evitar, só aparecia no cafe depois do render das guardas. Sentou-se na sua cadeira do costume, na sua mesa de sempre. Encostou a sua bengala na mesma posição de todos os dias e aguardou que a empregada lhe trouxesse o que não precisava já de pedir, por ser sempre igual. A empregada trouxe, e como de costume, sentou-se à sua mesa, com o brilho no olhar da criança que se vai deitar porque sabe que assim pode ouvir a história de encantar antes de adormecer. E aquelas eram verdadeiramente histórias de encantar.
Mas nesse dia o actor não actuou. Evitou o olhar da sua fã, e não pronunciou quaisquer palavras. E ali ficaram os dois em silêncio. Ela sem coragem para lhe pedir que contasse aquelas histórias que a faziam sonhar com uma vida diferente, que a faziam sentir-se menos vulgar. Ele sem coragem para lhe dizer a razão do seu silêncio.
Não arredou pé. Debaixo da mesa cruzava os dedos repetidamente, num gesto assumidamente de nervosismo, impaciencia e quase raiva. Será que aquele velho ainda não tinha percebido que as suas histórias lhe davam um motivo para continuar a sonhar o resto do dia? Será que ele não percebia o quanto aquelas histórias a marcavam, quanto a consolavam, quanto eram importantes para sobreviver mais um dia?
O actor continuava a olhar pela janela para as ruas daquela cidade que sabia de cor. Por dentro sorria, por ter ali a companhia daquela mulher, que sem lhe pedir nada em troca, tinha tornado os seus dias mais suportáveis naqueles ultimos anos. Nunca tinha tido ninguem que lhe desse aquela atenção sem nenhum motivo em particular. Desde que se lembrava de ser gente, que todas as suas relaçoes tinham tido por base segundas intenções. Primeiro por pertencer a uma familia com posses, depois por ser um rapaz elegante e influente na alta sociedade daquela cidade, e depois por se ter tornado famoso e conhecer todas as pessoas importantes no mundo do espectaculo. A sua vida tinha sido repleta de falsidades, mentiras, aparências e traições. E agora ali estava ela... uma rapariga nova, elegante, com o sorriso mais lindo que ele tinha visto em toda a sua vida, sentada à sua mesa, só para o ouvir...
Tinha ido no dia anterior à urgência. Não se andava a sentir muito bem nos últimos dias. Depois de lhe terem feito uma bateria de exames, o médico informou-o da necessidade de ficar internado. O seu coração estava fraco, precisava de optimizar terapêutica e ficar sob vigilância. O actor assinou a sua alta. Não queria morrer no hospital, sozinho. Sabia que era altura de partir, e não queria partir sem ver mais uma vez a unica pessoa que tinha realmente dado sentido à sua vida. Voltou para casa deitou-se na cama e esperou pela manhã seguinte. Só pedia a Deus que não o levasse antes de a voltar a ver. “Antes das 11h da manhã não. Deixa-me ficar aqui só mais um bocadinho..” repetia baixinho deitado na sua cama, enquanto uma lágrima escorria devagarinho pela sua face cansada da vida...
...O actor tomou o ultimo gole da sua meia de leite. Limpou cuidadosamente os labios, dobrou meticulosamente o pano e pouso-o em cima da mesa. Agarrou na sua bengala, olhou pela janela, e sem nunca cruzar o olhar com aquela mulher que tinha sido a sua companhia diaria naqueles ultimos anos, que tinha marcado eternamente a sua vida, disse: “Chegou a hora da cortina encerrar. Não me arrependo de nada. Apenas de não ter tido uma vida mais vulgar”
E saiu... passado pouco tempo a ambulancia chegou. A empregada soube depois que uma vizinha quando entrou no predio tinha encontrado o actor caido no chão e chamou a ambulancia. Não tinha chegado a tempo, e o óbito foi confirmado no local...
A empregada pediu licença à patroa e voltou para casa mais cedo nesse dia...sentia que a sua vida se tinha tornado naquele momento mais vazia, menos brilhante... “I’m just an ordinary girl...” repetia ela vezes sem conta enquanto limpava as lagrimas que teimavam em cair sem parar no seu caminho de volta a casa naquela noite…
... Na secretária do actor ficou uma folha de papel dobrada. Nunca ninguem reparou nela, nunca foi lida. Dizia:
“She’s the most extraordinary girl..”