"...and you know my dear, Love is never too much..."
Lia aquela carta repetidamente e ficava sempre presa a esta ultima frase... as palavras que doiam, que pesavam, mas que nao conseguia deixar de ler.
Lia aquele pedaço de papel sentada ao fundo da sua cama, naquele quarto que um dia lhe tinha tambem pertencido.
Tinham-se conhecido ainda ela andava no secundário. Lembrava-se daquele dia como se fosse ontem, e já tantos outros dias tinham existido depois...
Tinha visto este rapaz pela primeira vez no corredor da cantina da sua escola. Mochila num ombro, cabelo loiro encaracolado, uns olhos azuis profundos...ar descontraido, como se o mundo lhe pertencesse e ele nem quisesse saber. E o sorriso, aquele sorriso que a tinha cativado ao primeiro olhar. Nunca tinha acreditado em amor à primeira vista. Mas tambem, quem falou em amor? Apenas um rapaz giro... e, afinal, quem sabe o que é o amor nessas idades?... Passou junto a ele e sorriu, mexendo timidamente no cabelo. Continuou o seu caminho. "Estranho nunca ter reparado nele. Devo andar mesmo distraida."- comentou com a sua amiga, recebendo um piscar de olho cumplice de volta. Nessa tarde saiu o portão da escola e dirigiu-se para a paragem de autocarro, como todos os dias fazia. Mais uma vez ali estava ele. Sorriu-lhe novamente. Recebeu outra vez aquele sorriso timido mas sincero de volta. O autocarro chegou. Entraram ambos, e ambos sairam na mesma paragem de autocarro. Seguiram pela mesma rua, já um bocadinho envergonhados. Ela parou à porta do seu predio. Ele parou tambem. Tinha-se mudado nesse mês para aquele prédio. Morava agora onde morava antes a D. Amélia, que coitadinha, tinha falecido uns meses antes. Sorriram um para o outro, desta vez com um sorriso aberto. Disseram timidamente os nomes, despediram-se e sorriram mais uma vez.
Começaram a encontrar-se frequentemente. Inicialmente porque o acaso assim os obrigava, depois porque começaram a construir o acaso. Tornaram-se melhores amigos. Os sorrisos deixaram de ser timidos. Os momentos acumulavam-se. Viviam, e quanto mais viviam mais queriam viver o outro. Ela cativou-o. Ele deixou-se cativar. Adorava o modo como ela mexia no cabelo, adorava quando ria tao alto que todos olhavam. Adorava aquela carteira pequenina, ja desbotada e gasta pelo tempo, mas que ela teimava em levar para todo o lado porque tinha sido oferta da sua avo. Adorava ir ao cinema com ela, adorava passear de mão dada, como se o mundo todo existisse apenas para testemunhar aquele amor... mas ninguem ama naquela idade, certo?
Os anos passaram, e aquela relação foi crescendo com eles. O que começou com um olhar fugidio, um sorriso discreto, tinha-se tornado agora num daqueles amores que ameça resgatar a eternidade. Anos mais tarde casaram. Tinham a certeza e não duvidavam de que este era o amor com que sempre tinham sonhado. Aquele dia foi o dia mais feliz das suas vidas. E à noite, antes de adormecer, ele abraçou-a num abraço eterno e disse "I Love you so much". " I Love you too much", respondeu-lhe ela.
Tinham uma vida perfeita. Ambos trabalhavam naquilo que sempre tinham ambicionado, tinham uma casa linda, familias maravilhosas, e tinham-se um ao outro. Todos os dias antes de adormecer trocavam as mesmas frases que tinham trocado na noite do seu casamento. Para que o mais importante nunca deixasse de ser dito. Para que nada ficasse por dizer.
Nesse dia ela chegou mais cedo a casa do trabalho. Abriu a porta e a casa pareceu-lhe mais vazia, como se alguem la tivesse entrado e tivesse roubado qualquer coisa preciosa. Correu todas as divisoes para ter a certeza que nao faltava nada. A porta não tinha qualquer sinal que tivesse sido forçada. "Estranho.", e abanou com a cabeça como que a recriminar aqueles pensamentos tão pouco sustentados. Quando foi de novo ao quarto reparou que tinha uma carta em cima da cama. Sentou-se em cima daquela colcha azul celeste, e abriu o envelope. Dizia:
" Lisboa, 27 de Setembro de 2009
Minha querida,
não sei por onde começar... Custa muito escrever-te esta carta, mas tinha que o fazer.
Quero que saibas que te amo, que sempre te amei, e não te deixei de amar. Foste o primeiro amor da minha vida, e o primeiro amor nunca morre. Mas foste tambem o meu primeiro ódio. Sim, hoje sei que te odiei. E por isso tenho que te pedir perdão. Por ter sentido estes sentimentos tão maus por ti, e por tos ter escondido todo este tempo. Desculpa-me. Acredita que durante muito tempo lutei contra eles. Achei que era este amor por ti que era tão grande que se transfigurava, e eu já não sabia o que era isto que sentia. Sabia apenas que era algo avassalador, imenso, arrebatador. E so ha dois sentimentos assim: o amor e o odio. So podia ser um desses dois.
Mas agora percebo... e é por isso que tenho de partir. Não te quero odiar. Quero apenas amar.te. Amar-te como te amei naquele primeiro momento em que os nossos olhares se cruzaram, lembras-te? Lembras-te de como nos sentimos? Lembras-te de durante muitos anos termos brincado porque naquelas idades não se sabe o que é o amor? Pois bem, eu agora acredito que aquele foi o unico momento em que realmente te amei. Em que realmente te entreguei a minha alma, sem medos, sem falsidades. O momento em que mais te amei foi quando ainda nao te conhecia. Depois... depois levaste-me. Agarraste na minha alma, e levaste-a para um sitio so teu. Não quis saber, deixei-me levar. Quis ir. Era nesse sitio que eu queria estar. Contigo. Tu. Tu foste sempre a unica coisa que importou no meu mundo. Este amor por ti, este amor louco, doentio. (Quando se ama assim, em que nao importa o que a outra pessoa faz, ou como é, o que diz, o que faz... qual é a diferença entre esse amor e a indiferença?Talvez nenhuma...) Quis construir uma vida a teu lado. Acreditei que ia dar a volta ao mundo nos teus braços, que ia viver dias e noites, e madrugadas e pores-do-sol, tudo ao teu lado. Tu, sempre tu. Tu como primeiro pensamento quando acordava. Tu nos meus braços antes de adormeceres. O teu corpo ao meu lado enquanto dormia. TU, TU, TU...
... comecei a odiar-te. Porque depois destes anos todos a minha alma continuava naquele sitio para onde a tinhas levado. Mas tu ja nao estavas la. Tu tinhas crescido, e aquele amor que tu tambem sentiste naquele primeiro instante, naquele instante em que amaste o meu sorriso, e o meu cabelo encaracolado e a minha mochila num ombro, esse amor tinha desaparecido. Esse amor imenso, incondicional, sem barreiras tinha-se tornado num amor com medidas. A tua frase todas as noites lembras-te? " I love you too much"... Como se fosse possivel amar-se demasiado. Como se o amor tivesse limites, ou medidas. Essa frase todas as noites a lembrar-me que tu ja nao estavas la, onde a minha alma tinha ficado. Comecei a odiar-te. Comecei a odiar-te na incapacidade de conseguir sentir por ti um sentimento menos que o amor..ou o odio. Se nao te podia amar, se tu nao me deixavas amar-te, entao so te podia odiar...
Comecei a odiar a maneira como mexes no cabelo. Comecei a sentir-me incomodado e envergonhado cada vez que te ris alto e poes toda a gente a olhar para ti. Ofereci-te uma carteira nova nos teus anos por ter começado a achar ridiculo andares com uma carteirinha tão feia e velha para todo o lado. Comecei a odiar ir ao cinema, e a minha mão já nao procurava a tua das poucas vezes que ainda iamos passear. mas tu não percebeste estes sinais... e eu muito menos. E quando percebi, já era tarde demais..já te odiava!
Sabes, as vezes gostava de poder voltar atras. De poder voltar aquele segundo, aquele momento unico em que as nossas almas se encontraram pela primeira vez, em que o nosso olhar encontrou o olhar do outro. Se pudesse voltar a esse momento sabes o que fazia? Nao entrava naquele autocarro contigo naquela tarde. A nossa vida deveria ter sido apenas aquele momento. Porque o nosso amor começou e acabou naquele olhar. A partir dai, foi sempre demais...
... and you know my dear, Love is never too much..."
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